S. João Novo estava numa agitação. Desde que passara a tribunal, o velho convento não mais tivera sossego. E hoje ainda menos, que era um dia especial, especialmente ruidoso, buliçoso, com toda aquela gente a aguardar o julgamento do século.
Século que era o XIX, claro, já que estávamos, então, em 1891.
Desde os idos de Março do ano anterior a agitação, a indignação pela ignomínia, e a publicitação pormenorizada do hediondo crime, e do não menos odioso presumível autor, não mais cessara. Os jornais publicavam diariamente pormenores sobre a evolução das investigações. Escreveram-se libretos e folhetos, ao mesmo tempo que os boatos, naturalmente, não deixavam de circular.
O caso da portuense Rua das Flores ganhou foros de internacionalidade e cotejava já com os grandes “affaires” criminais. Por tudo isto, não admira que o tribunal se tivesse enchido de curiosos.
Como curioso era constatar que, para quase toda a gente, Vicente Urbino de Freitas já estava condenado à partida, mesmo antes de ser julgado. Era o que dizia o diário portuense “A República”, na sua edição de 22 de Abril de 1890: “Um homem que, enquanto não se provar o contrário, é um envenenador odiosíssimo”.
Voltemos a S. João Novo.
Acaba de entrar na sala de audiências a baronesa Vandestad-Walkalt, bela, de um “chic” parisiense, que, por entre os rumores do público, vai ocupar o lugar que reservara na sala; reserva esta (diga-se, para não se estranhar) feita com a anuência do juiz presidente, em troca de considerável maquia para os pobres. Que se havia de fazer se estes eram os vícios da nórdica e misteriosa dama: dar donativo para os hospitais que visitava, aquando das visitas que fazia aos grandes criminosos da Europa. Balançava entre o bem e o mal, a nobre senhora… Enquanto isso, ia escrevendo as suas impressões sobre esses grandes casos criminais, que não consentia fossem publicadas senão depois da sua morte (esperava-se que não às mãos de uma grande criminoso, entenda-se).
Deixemos a baronesa porque acaba de entrar na sala o réu.
Vem algemado, escoltado por dois farfalhudos fardados, mas nem por isso cabisbaixo. Altivo, aparentando uns 60 anos, não são visíveis nele as marcas de um ano na cadeia da Relação do Porto, entremeado por numerosas audiências preliminares, que resultariam naquele processo, em três volumes e mais de 500 folhas, que está ali na bancada dos magistrados.
Com a entrada do réus na sala é a pateada geral. Esquecidos estavam respeito e admiração que este homem, há não muito tempo, granjeava. O “veredicto” agora é unânime: culpado! O silêncio só volta com a chegada à sala dos togados magistrados.
Lido o libelo acusatório, rezava este que Vicente Urbino de Freitas era médico e professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Vinha acusado de envenenamento de que resultara a morte de um cunhado e de um sobrinho, bem como de envenenamento, de consequências não letais, da sogra e de duas sobrinhas. Cinco crimes de envenenamento de familiares por um médico justificam, já, o impacto público do caso, não é? Mas os pormenores eram ainda mais sordidamente interessantes e motivadores.
Remontemos à Rua das Flores, no Porto, ao dia 30 de Março de 1890. Neste dia, na casa de um abastado comerciante desta rua, o Sr. Sampaio, entregaram uma caixa remetida de Lisboa. Dentro desta, três caixinhas delicadamente embrulhadas, dirigidas aos netos deste: Mário, Berta e Maria Augusta. Embora enlutada pela recente morte do pai das crianças, a família Sampaio não deixou de sentir alegria quando, abertas as caixas, se verificou que estas continham bombons de amêndoa, coco e chocolate. Hum! Que delícia, pensaram as crianças e a avó ao comerem os doces. Só que… logo veio a indisposição e, que se havia de fazer, o melhor era chamar um médico, quem? O Urbino, que é da família, claro! Assim fizeram e ainda mal…
No dia 2 de Abril, passados que estavam exactamente 3 meses sobre a morte do pai, morre o pequeno Mário. As suas irmãs e avó sobreviveram graças à indisciplina em acatarem as prescrições médicas do dr. Urbino.
Pouco tempo depois soube-se que a causa de tudo isto foi envenenamento. Suspeita-se, então, que a súbita morte do pai das crianças tenha tido igual causa. E quem medicamentara, na sua misteriosa doença, o jovem filho do Sampaio fora, igualmente, o Urbino. E sabendo-se que a cunhada deste pré-morrera… E sabendo-se que o comerciante Sampaio era senhor de grande fortuna… E sabendo-se que com todas estas mortes (e mais algumas…), a mulher do Urbino, filha do Sampaio, ficava única herdeira deste… E vindo-se a saber que, afinal, o Urbino andava mal de finanças… E que, ultimamente, havia feito umas misteriosas deslocações a Lisboa… E… tudo junto, fez com que as suspeitas recaíssem sobre o agora réu.
A descrição do julgamento vem, com todos os pormenores, nos jornais da época. Ficou estabelecida a culpabilidade do envenenador Urbino.
A baronesa Vandestad-Walkalt tinha mais uma história para contar. Os portuenses afinal tinham razão: culpado!
De conceituado médico e professor, Urbino converteu-se num vil envenenador, condenado a 28 anos de degredo. “Sic transit gloria mundi”. E, por acaso, este crime da Rua das Flores até dava um bom filme série B…Luis Miguel Novais
(Texto primeiro publicado no jornal Semanário, suplemento Mais, em 4 de Fevereiro de 1989)