sábado, 22 de dezembro de 2012

Crime da Rua das Flores - o envenenador Urbino

S. João Novo estava numa agitação. Desde que passara a tribunal, o velho convento não mais tivera sossego. E hoje ainda menos, que era um dia especial, especialmente ruidoso, buliçoso, com toda aquela gente a aguardar o julgamento do século.
Século que era o XIX, claro, já que estávamos, então, em 1891.
Desde os idos de Março do ano anterior a agitação, a indignação pela ignomínia, e a publicitação pormenorizada do hediondo crime, e do não menos odioso presumível autor, não mais cessara. Os jornais publicavam diariamente pormenores sobre a evolução das investigações. Escreveram-se libretos e folhetos, ao mesmo tempo que os boatos, naturalmente, não deixavam de circular.
O caso da portuense Rua das Flores ganhou foros de internacionalidade e cotejava já com os grandes “affaires” criminais. Por tudo isto, não admira que o tribunal se tivesse enchido de curiosos.
Como curioso era constatar que, para quase toda a gente, Vicente Urbino de Freitas já estava condenado à partida, mesmo antes de ser julgado. Era o que dizia o diário portuense “A República”, na sua edição de 22 de Abril de 1890: “Um homem que, enquanto não se provar o contrário, é um envenenador odiosíssimo”.
Voltemos a S. João Novo.
Acaba de entrar na sala de audiências a baronesa Vandestad-Walkalt, bela, de um “chic” parisiense, que, por entre os rumores do público, vai ocupar o lugar que reservara na sala; reserva esta (diga-se, para não se estranhar) feita com a anuência do juiz presidente, em troca de considerável maquia para os pobres. Que se havia de fazer se estes eram os vícios da nórdica e misteriosa dama: dar donativo para os hospitais que visitava, aquando das visitas que fazia aos grandes criminosos da Europa. Balançava entre o bem e o mal, a nobre senhora… Enquanto isso, ia escrevendo as suas impressões sobre esses grandes casos criminais, que não consentia fossem publicadas senão depois da sua morte (esperava-se que não às mãos de uma grande criminoso, entenda-se).
Deixemos a baronesa porque acaba de entrar na sala o réu.
Vem algemado, escoltado por dois farfalhudos fardados, mas nem por isso cabisbaixo. Altivo, aparentando uns 60 anos, não são visíveis nele as marcas de um ano na cadeia da Relação do Porto, entremeado por numerosas audiências preliminares, que resultariam naquele processo, em três volumes e mais de 500 folhas, que está ali na bancada dos magistrados.
Com a entrada do réus na sala é a pateada geral. Esquecidos estavam respeito e admiração que este homem, há não muito tempo, granjeava. O “veredicto” agora é unânime: culpado! O silêncio só volta com a chegada à sala dos togados magistrados.
Lido o libelo acusatório, rezava este que Vicente Urbino de Freitas era médico e professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Vinha acusado de envenenamento de que resultara a morte de um cunhado e de um sobrinho, bem como de envenenamento, de consequências não letais, da sogra e de duas sobrinhas. Cinco crimes de envenenamento de familiares por um médico justificam, já, o impacto público do caso, não é? Mas os pormenores eram ainda mais sordidamente interessantes e motivadores.
Remontemos à Rua das Flores, no Porto, ao dia 30 de Março de 1890. Neste dia, na casa de um abastado comerciante desta rua, o Sr. Sampaio, entregaram uma caixa remetida de Lisboa. Dentro desta, três caixinhas delicadamente embrulhadas, dirigidas aos netos deste: Mário, Berta e Maria Augusta. Embora enlutada pela recente morte do pai das crianças, a família Sampaio não deixou de sentir alegria quando, abertas as caixas, se verificou que estas continham bombons de amêndoa, coco e chocolate. Hum! Que delícia, pensaram as crianças e a avó ao comerem os doces. Só que… logo veio a indisposição e, que se havia de fazer, o melhor era chamar um médico, quem? O Urbino, que é da família, claro! Assim fizeram e ainda mal…
No dia 2 de Abril, passados que estavam exactamente 3 meses sobre a morte do pai, morre o pequeno Mário. As suas irmãs e avó sobreviveram graças à indisciplina em acatarem as prescrições médicas do dr. Urbino.
Pouco tempo depois soube-se que a causa de tudo isto foi envenenamento. Suspeita-se, então, que a súbita morte do pai das crianças tenha tido igual causa. E quem medicamentara, na sua misteriosa doença, o jovem filho do Sampaio fora, igualmente, o Urbino. E sabendo-se que a cunhada deste pré-morrera… E sabendo-se que o comerciante Sampaio era senhor de grande fortuna… E sabendo-se que com todas estas mortes (e mais algumas…), a mulher do Urbino, filha do Sampaio, ficava única herdeira deste… E vindo-se a saber que, afinal, o Urbino andava mal de finanças… E que, ultimamente, havia feito umas misteriosas deslocações a Lisboa… E… tudo junto, fez com que as suspeitas recaíssem sobre o agora réu.
A descrição do julgamento vem, com todos os pormenores, nos jornais da época. Ficou estabelecida a culpabilidade do envenenador Urbino.
A baronesa Vandestad-Walkalt tinha mais uma história para contar. Os portuenses afinal tinham razão: culpado!
De conceituado médico e professor, Urbino converteu-se num vil envenenador, condenado a 28 anos de degredo. “Sic transit gloria mundi”. E, por acaso, este crime da Rua das Flores até dava um bom filme série B…

Luis Miguel Novais

(Texto primeiro publicado no jornal Semanário, suplemento Mais, em 4 de Fevereiro de 1989)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Amnésia - Memória de uma Viagem Inter-Estelar

Uma destas noites o Flash Gordão ia de transgaláctica viagem quando encontrou o Captain Powder (acompanhado...). Já não se viam desde aquela vez em que tinham revisto juntos o Rollerball no velho Metropolis, aquele cinema da três ziliões Láctea Via. Ficaram amigos desde então. Por isso radiantes desde agora. Mal se encontraram, decidiram que a ocasião pedia celebração. Tinham de ir juntos tomar uns copos e abanar os corpos.

O Captain tinha ouvido dizer haver no térreo planeta do sistema solar uma estação interstelar que estava a dar. Diz que fica na velha Europa, ali num pequeno jardim à beira-mar chamado Portugal, num canteiro chamado Francelos. Que gostava de lá ir. O Gordão não diz que não, que por ele tudo bem, vamos.

Consultaram o mapa Zen, programaram as coordenadas no macro do voador e Power... Flash... Vuum: Via Láctea... Sol... Terra... Europa... Ibérica... Portugal... Porto... Francelos. Chegaram num minuto. Breve, como convém a estes heróis pós-modernos da ciencional ficção.

Sensacional a ficção. Nela, os heróis chegam sempre bem mais rapidamente que outros modernos, não tão ficcionais, que ainda tripulam naves com rodas sobre vias de buracos. Como os terráqueos Silva e sua sónica, que vivem no Porto e demoraram dez minutos, inteirinhos e mal contados, para chegarem ao tal sítio...

Como o Gordão e o Powder são clientes ainda mais espacio especiais, ninguém viu por onde entraram. Aliás, parece que ninguém sequer os viu quando lá estiveram. Mas isso também não é assim tão surpreendente, pois não? Afinal, como é que são as noites de amnésia? Quem é que se lembra?

Luis Miguel Novais

(Excerto de um texto primeiro publicado no suplemento Mais do jornal Semanário, em 30 de Julho de 1988)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Minha linda peruca

Acto I
Lentamente, imponente, descia a enorme escadaria. A Corte, reverente, lança um incontido Oh! de estupefacção e alegria. Coroando a majestática cabeça de Sua Excelência o Sol feito Rei, um volumoso refulgente e ondulado aparato capilar...

Acto II
Apressadamente, fatigada, subia a estreita escada. O público, excitado, assobiava, aguardava a entrada em cena do próximo revisteiro número. Subido o pano ela aí fica, à boca da dita, só, enfrentando o uníssono uivo, equilibrando sobre a frágil cabecita uma estranha, descomunal e dupla trança...

Acto III
Descompassadamente, agora, o andor abandona o compasso. O sacristão, apressado, encosta o escadote por onde, logo, sobe. Enleva e dobra o longo manto, e, da cabeça da Senhora estátua, retira o capilar adorno...

Intervalo
Como sei que é bom observador, caro leitor, tranquilizo-me no pensamento de que já percebeu o que há de comum nestas três situações, ou melhor encenações...

Finalle
Termina como o filme de Roberto Rossellini sobre o Rei-Sol: Luis XIV abandona-se ao conforto dos purpúreos aposentos privados, despe lentamente o cenário corporal envolvente, retira a peruca, e lê em voz alta: "Há uma elevação que não depende do acaso; é um certo dom de superioridade destinado aos grandes actos. É essa qualidade que marca a nossa diferença em relação aos outros homens e nos põe acima deles; mais que o nascimento, as honras, e o próprio mérito".

Diga lá o leitor se não é apropriado a esta nossa Era de encenação.

Luis Miguel Novais

(Excerto de texto primeiro publicado, em 18 de Fevereiro de 1989, no suplemento Mais do jornal Semanário)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O problema de Icaro

Não sabia nadar. Afogou-se no mar. Não compreendo porque insistimos em acreditar que o problema de Icaro foi o de querer voar alto de mais.

Não tem mal nenhum querer voar até ao sol.

Nem mal vem se as asas se nos derretem.

Conveniente mesmo é saber nadar.

Luis Miguel Novais

sábado, 11 de agosto de 2012

Entre as brumas

Quando surge, o que nem é raro, tomba muito espesso e envolvente o nevoeiro à beira-Tejo.

Era um desses dias brumosos em Santa Apolónia.

O som de um navio abafou, grave e longo, o ruído da estação de comboios. Estridente, o apito de partida pôs-me em movimento.

Acenávamos e ainda ecoavam na minha memória as nossas últimas palavras na plataforma, trocadas antes de eu ter embarcado no comboio de regresso ao Porto:

- Não compreendo porque insistes em replicar a vida do personagem do teu livro.

- Talvez eu tenha sido ele - respondi.


Luis Miguel Novais

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Quatrième Gymnopédie

O locutor de rádio falava sozinho.

Ele não sabia, mas ninguém o escutava.

Ainda bem. Anunciava a quarta gymnopédie de Erik Satie.

Para o éter emitia a possibilidade de as estátuas terem uma quarta dimensão.

Que talvez tivesse escapado a Satie, quando concebeu os três ângulos das gymnopédies.

Mas, como ao locutor ninguém o ouvia, a todos escapou.

É muito provável que as estátuas não tenham alma. Mas não sabemos bem. A ele ninguém lhe tinha dito para não o dizer na rádio.

Bem vistas as coisas, é pouco provável que ele soubesse que não podia dizer que existe uma quarta dimensão para as coisas que têm três.

Tal como os astronautas da Apolo, que continuaram a transmitir quando já tinham sido desligados da televisão, ele limitava-se a dizer o que lhe parecia. Ninguém o ouvia, mas ele não sabia.

O que até o aliviava das consequências, segundo Mateus: felizes os pobres de espírito...

E o deixava só, e não apenas sozinho, com a criação intelectual. Logos, ergo sum.

Não tendo de se preocupar com os anunciantes, nem com o dinheiro, ficava cometido apenas à criação.

Simplesmente. Como os da Apolo, segundo Mateus. Em monólogos.

Há criações que não têm de ter público, nem propósito.

O contrário também é verdadeiro.

Mas menos feliz.


Luis Miguel Novais

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Morte em Agosto

Os sinos dobram finados enquanto o mar murmura vida.

O Sol desponta por entre o nevoeiro.

Vou indo.

Para onde?

A caminho da Lua.

Luis Miguel Novais