O locutor de rádio falava sozinho.
Ele não sabia, mas ninguém o escutava.
Ainda bem. Anunciava a quarta gymnopédie de Erik Satie.
Para o éter emitia a possibilidade de as estátuas terem uma quarta dimensão.
Que talvez tivesse escapado a Satie, quando concebeu os três ângulos das gymnopédies.
Mas, como ao locutor ninguém o ouvia, a todos escapou.
É muito provável que as estátuas não tenham alma. Mas não sabemos bem. A ele ninguém lhe tinha dito para não o dizer na rádio.
Bem vistas as coisas, é pouco provável que ele soubesse que não podia dizer que existe uma quarta dimensão para as coisas que têm três.
Tal como os astronautas da Apolo, que continuaram a transmitir quando já tinham sido desligados da televisão, ele limitava-se a dizer o que lhe parecia. Ninguém o ouvia, mas ele não sabia.
O que até o aliviava das consequências, segundo Mateus: felizes os pobres de espírito...
E o deixava só, e não apenas sozinho, com a criação intelectual. Logos, ergo sum.
Não tendo de se preocupar com os anunciantes, nem com o dinheiro, ficava cometido apenas à criação.
Simplesmente. Como os da Apolo, segundo Mateus. Em monólogos.
Há criações que não têm de ter público, nem propósito.
O contrário também é verdadeiro.
Mas menos feliz.
Luis Miguel Novais