segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Filha de Labão

Que imenso prazer me deu a leitura do livro Filha de Labão (edição Livros de Bolso Europa América, 1972), que me ofereceu a Cristina Almeida Lopes, parente do autor Tomás da Fonseca (1877-1968).

Rendo-me a esta "memória do lavrador, meu antepassado, que há dois séculos plantou na serra a laranjeira a cuja sombra se ideou e tomou forma esta novela rústica", conforme escreveu (logo a abrir o livro) Tomás da Fonseca, em 1950, marcando o tom. Um tom beirão de sabor rural, com mar, serrano e marítimo, em língua de Portugal profundo (de entre a Torreira e Aveiro marítimas, à Bairrada e Caramulo serranas), que me deixou sedento e sofredor - parece que me faltavam as palavras, como quando leio um texto muito erudito numa língua estrangeira que conheço bem; mas, ao mesmo tempo, senti sempre que estava dentro da língua portuguesa. Essa bela língua que, obviamente, Tomás da Fonseca dominou, ao ponto de me surpreender. Muito. Um grande clássico, imortal, este seu livro.

Dou um exemplo, quase ao acaso, de um texto intemporal deste livro que tive a felicidade de agora conhecer: 

"Nesse tempo, desde a Ribeira do Arinto ao Monte Agudo, até fechar nas depressões de Criz, poucos anos havia que o labirinto de montes e vales que ficam dentro desse vasto perímetro não fosse lambido pelo fogo.

E que fogos!

Sobretudo quando o suão puxava e um vizinho perverso, por inveja, despeito ou por vingança, ia de noite chegar o lume a laborinha seca.

Mal o clarão se divisava, logo de casa em casa estrugia o grito lancinante:

- Ao fogo!

Era das Fontainhas ou da Infesta que eles rebentavam quase sempre, por serem vales escondidos, onde a noite põe medo, mas de retirada fácil para o incendiário.

Em poucos minutos as labaredas apareciam no alto, já com a costa limpa até ao rio. E então é que era galopar de lomba em lomba, a distender aquelas línguas que estalavam no ar como chicotes de aço.

E se fosse só mato que essa corda de lume devastava. Mas era tudo o que encontrava na passagem: pinheirais, olivedos, soutos...

Medronheiros então era todos os anos, ora no Panzelinho, ora na Frágua, por toda a encosta dos Sanchinhos, donde os casais mais próximos retiravam a lenha para o forno, a estaca para a vinha e colhiam o medronho para a destilação.

Nesse ano, além dos matos e florestas, foram também os apiários, chegando a correr mel ladeira abaixo, até ao rio".

Como o vinho que correu pelas ruas de Anadia este ano, e por elas e pelas redes sociais abaixo chegou mesmo até a um amigo nos Estados Unidos da América, que me perguntou... que abundância era esta.

Não vale pesquisar o significado metafórico do título, antes de ler o livro...

Luis Miguel Novais